Por apenas alguns segundos, tente imaginar a vida sem todas as coisas que fazem parte do seu dia-a-dia. Nada de energia elétrica, água encanada e tratada, computador, telefone, internet. Imagine a sua rotina sem carros, sem trânsito, sem bancos, supermercados ou farmácias. Sem os prazeres e os tormentos do consumo e de todos os outros aspectos da vida moderna.

 

Parece ficção? Ou algo que talvez algum antepassado seu tenha feito há séculos atrás? Pois é assim, exatamente assim, que parte dos moradores das 18 comunidades isoladas de Ilhabela ainda vive, preservando as raízes dos primeiros povos que desembarcaram por aqui.

 

 

Muito além da orla

 

Formado pela grande ilha de São Sebastião, que em sua parte voltada para o canal de mesmo nome abriga uma extensa área urbanizada, e por outras três ilhas menores (Vitória, Búzios e Pesquedores), além dos ilhotes das Cabras, da Sumítica, da Serraria, dos Castelhanos, da Lagoa, da Figueira e das Enchovas, o arquipélago de Ilhabela compreende uma área de mais de 330 quilômetros quadrados, e tem mais de 80% de seu território protegido pela criação, desde de 1977, de um Parque Estadual.

 

Colonizada pelos portugueses no século XVII, a região foi refúgio de piratas, porto de escravos e área de cultivo de café e cana-de-açúcar. No início do século XX, com o declínio da atividade agrícola, teve sua população drasticamente reduzida, e as fazendas deram lugar a pequenos vilarejos de pescadores.

 

É desses grupos remanescentes, que por aqui fincaram suas raízes, que descendem os ilhéus que hoje chamamos de caiçaras. Enquanto parte desse povo seguiu os rumos da civilização moderna e se adaptou ao estilo de vida criado ao redor da orla marítima, uma outra parte resistiu a todas essas mudanças e permaneceu em suas áreas de origem onde, graças ao isolamento gerado pelos aspectos naturais e geográficos, conseguiram manter seu modo de vida e seus costumes, preservando a história e a cultura centenária de seus ancestrais.

 

 

Comunidades tradicionais

 

Embora não existam dados consolidados que informem o número exato de pessoas e famílias que vivem em núcleos isolados, segundo informações da prefeitura, existem hoje cerca de 20 comunidades tradicionais, nas seguintes regiões: Praias do Bonete, das Enchovas, de Indaiaúba, Saco do Sombrio, praias da Figueira, Vermelha, Mansa e Castelhanos, Saco do Eustáquio, praias das Guanxumas, da Serraria, da Fome e do Jabaquara, todas na Ilha de São Sebastião; Porto do Meio, Guanxumas, Pitangueira, Costeira e Mãe Joana na Ilha de Búzios; Ilha da Vitória e Ilha dos Pescadores.

 

Auto-sustentadas, essas comunidades vivem basicamente da pesca artesanal e do plantio de pequenas roças de mandioca e feijão. A venda do pescado e, em pequena escala, de algum artesanato, são a principal fonte de renda.

 

A distância e a dificuldade de acesso de cada uma das comunidades é o fator que determina o grau de preservação da cultura desses povos. Em lugares como as praias do Jabaquara, do Bonete e de Castelhanos, que recebem um grande fluxo de turistas e tem acesso menos restrito, a influência externa já pode ser notada em parte das construções, nos hábitos de consumo e até mesmo na fala e nos costumes dos mais jovens. Mesmo assim, os aspectos mais fortes, como a pesca, a construção de canoas e uma profunda ligação com a terra, o mar e a natureza, ainda se mantêm como traços fortes, passados de geração para geração.

 

Já nas comunidades mais distantes, como as Ilhas de Búzios e da Vitória, praticamente não há atividade turística e o acesso restrito à cultura externa mantém mais forte e preservada a ligação do caiçara com suas origens. Nessas comunidades, as casas são muito simples, construídas artesanalmente com elementos da natureza, como barro e galhos de árvores. A maioria não tem banheiro, água encanada ou energia elétrica. A base da alimentação é a farinha de mandioca, o peixe e o feijão, e essa dependência exclusiva dos recursos naturais preserva nessas pessoas um respeito profundo pela natureza.

 

Sujeitos às condições climáticas, os moradores passam dias a fio sem deixar suas comunidades, já que o acesso feito apenas pelo mar, em canoas artesanais, fica absolutamente impedido sob tempo ruim. Nesses períodos, a salga do peixe e a armazenagem da farinha garantem a sobrevivência das famílias.

 

Ao mesmo tempo em que preserva as comunidades, o isolamento restringe o acesso de seus moradores aos serviços básicos municipais. O atendimento médico, por exemplo, é feito por uma equipe que visita as praias e ilhas isoladas em uma lancha da prefeitura, batizada de Ambulancha, que tem por objetivo levar serviços básicos e emergenciais. Em parte das comunidades, a prefeitura já instalou pequenas escolas e mantém professores. Em parceria com o município, projetos como o Bela Ilha, que está levando saneamento básico e educação ambiental a essas áreas, também tentam proporcionar mais qualidade de vida a esses moradores. É mais do que eles tinham há tempos atrás e, provavelmente, menos do que eles precisam ou gostariam.

 

O importante e destacar que cada uma dessas comunidades, que pleno século XXI luta para manter sua tradição e suas raízes, carrega consigo algo que grande parte da nossa sociedade perdeu pelo caminho: a sensação de pertencimento à sua terra, o orgulho de suas origens e a consciência de que o homem não é nada sem a natureza.

 

 

 

 

Agradecimento

 

Todas as imagens utilizadas nesta reportagem foram gentilmente cedidas pelo autor, o fotógrafo Rodolfo Tucci, sem nenhum fim lucrativo, exclusivamente com o objetivo de divulgar a cultura caiçara.

 

De carona na Ambulancha, e também em outras embarcações, Rodolfo passou quase três anos registrando e documentando o modo de vida dessas comunidades, em um trabalho singular que deu origem à exposição “Almar – Um Retrato do Isolamento”, lançada em 2008 na Secretaria de Cultura de Ilhabela, em comemoração a Semana da Cultura Caiçara.

 

Outras imagens e mais detalhes sobre o trabalho do autor podem ser conferidos no site: www.ilhadeimagem.blogspot.com