Dizem que a vida é um eterno partir, realizar e voltar! Isso está na rotina da vida de todos: na ida ao trabalho, à escola, nos passeios, nos amores. A própria vida é nascer, viver e morrer. É o ciclo eterno, que se encerra no começo para recomeçar outra vez, revitalizando sentimentos e fazendo com que sigamos renovados.
Mas qual é sua melhor parte? Partir?! Realizar?! Voltar?!
Nossa saída de Portugal não foi fácil. Doía no coração deixar essa terra maravilhosa e, principalmente, as pessoas que aprendemos a gostar em tão pouco tempo. Mas era hora de seguir viagem e conhecer novos lugares, pois o inverno chegava e tudo ficaria mais difícil na navegação se demorássemos mais tempo.
Na travessia para as Canárias, tivemos mais um tripulante para dividir os turnos: o amigo Claudio Cannatá, que está tirando um ano sabático. O Claudio é um sujeito tranquilo, sempre bem humorado e com alto astral. Ele nunca fez uma travessia longa, mas pensa entusiasmado em comprar um veleiro para viajar e essa travessia seria um teste para ele.
Saindo de Lisboa, tivemos novamente a emoção de descer o Tejo e fazer o caminho dos antigos navegadores. Não me saia da cabeça a imagem das caravelas descendo o rio e ganhando o mar sem fim português.
O único desconforto na travessia para as Canárias foi o mar de popa que pegamos, que balançava muito o Travessura. O Claudio, que não estava acostumado, sofreu um pouco, mas não enjoou e nunca perdeu o bom humor e a prontidão quando era necessário. Rimos muito com as histórias dele e a Carol acabou a viagem chamando-o de “tio” (olha, para ela eleger um “tio”, não é fácil não!!!).
A chegada em Gran Canária, após seis dias de viagem, foi muito bonita e a ilha nos surpreendeu. É uma ilha grande e muito bem estruturada. Tem rodovias muito largas e as cidades são populosas. É totalmente diferente das ilhas que conhecemos nos Açores, mas bela também. Uma coisa que é diferente para nós e nos chamou muito a atenção é a topografia da ilha: muito alta, escarpada e com estradas que beiram precipícios. Dessa forma, muitas das paisagens são belíssimas! Algo interessante é que o nome “Canárias” não vem de “canários” (pássaros), mas sim de “canis”, pois a ilha tinha muitos cães quando foi descoberta.
Após nossa chegada nas Canárias, demos uma arrumada no barco, pois a tripulação iria crescer mais: a prima Isabel de Portugal chegava para nos visitar. Que bom recebê-la e poder matar as saudades!!! Com ela, houve uma grande e importante mudança em nossa rotina. Isabel é uma pessoa muito dinâmica e organizada. Ela chegou com mapas e indicações de tudo que havia para conhecer em cada ilha, e não era pouca coisa! Dessa forma, com muito para conhecer e com pouco tempo, pois as férias da Isabel eram curtas, passamos a acordar bem cedo para sair e conhecer cada cantinho da ilha com um carro que alugamos. Eu, da minha parte, aproveitei e tirei minhas “férias”: entreguei o comando em terra para os sempre eficientes Isabel e Claudio. Foram dias ótimos, sentado no banco de trás do carro, curtindo as paisagens, fotografando e só tendo que opinar se iríamos entrar numa estradinha pequena para conhecer novas paisagens ou não! Eu estava precisando disso!!!
Ao final de cinco dias em Gran Canária, fomos para Tenerife, outra grande ilha do arquipélago das Canárias. Seria a primeira navegação da Isabel e, apesar de curta, com cerca de 10 horas, eu estava preocupado dela não passar bem. Santa ilusão!!! Foi a que mais aproveitou a travessia e era a mais animada em fazer tudo! Dirigiu o barco parte do tempo, fez tudo que precisava sem problemas e sem largar a máquina fotográfica, que usou o tempo todo. Estava sempre com um sorriso gostoso estampado no rosto! Quem também aproveitou muito essa travessia foi o Jonas, que curtiu a deliciosa velejada quase sem sair do leme.
Outra preocupação que tínhamos era com um vulcão submarino na ilha de El Hierro, que estava em franca atividade. Mas o porto em Tenerife é muito abrigado e tínhamos toda a grande e escarpada ilha de Tenerife entre nós e o El Hierro. Dessa forma, ficamos tranquilos, mas sempre de olho nas atividades do vulcão.
Em Tenerife há o pico mais alto da Espanha, o El Teide, e foi o mais bonito passeio da ilha para nós. Não chegamos ao seu topo, de mais de 3700 metros, pois fecharam a subida por más condições meteorológicas. Mas chegamos na base do teleférico, a 2500 metros de altura, e as paisagens desse platô são fantásticas!
Mas, como tudo que é bom dura pouco, nossa prima e amigo tiveram que partir. Isabel precisava voltar ao trabalho e o Claudio tinha que ir para a Itália, para tirar seu passaporte europeu. Foram muitos dias excelentes com eles, com passeios durante o dia e a tradicional cerveja e sangria à noite, com muito papo e brincadeiras. Sentimos bastante falta deles nos primeiros dias!
Tivemos que ficar em Tenerife mais tempo do que previsto, pois as informações meteorológicas previam ondas de 4 a 5 metros no caminho para Cabo Verde. Mas esperamos pacientemente, aproveitando para conhecer melhor a cidade e ainda podendo reencontrar os amigos Dorival e Catarina do Luthier e conhecer a tripulação de gaúchos do veleiro Maná, pessoal muito divertido. Outra boa notícia que recebemos em Tenerife foi que os amigos do veleiro Flyer, de Ilhabela, compraram outro barco maior para a família e pretendem continuar a viajar. Ficamos muito felizes por eles!
Quando a previsão de tempo mostrou uma janela, saímos para Cabo Verde totalmente abastecidos, pois nos disseram que é difícil o aprovisionamento lá. Pegamos uma calmaria no meio do caminho e, para economizar diesel para a travessia até o Brasil, ficamos andando muito devagar durante dois dias. Mas foi muito bom: aproveitamos para descansar bastante e curtir estar no mar, vendo golfinhos e baleias muitas vezes. Numa dessas vezes, como estávamos devagar, os golfinhos chegaram brincando e ficaram na proa do Travessura muito perto do barco. A Carol deitou na proa, esticou a mão para a água e conseguiu fazer carinho por duas vezes no dorso dos golfinhos! Depois foi a vez do Jonas, que com o braço mais comprido pode passar a mão mais facilmente. E como eram dóceis os golfinhos: não se assustavam e não se afastavam, continuando a brincar na proa do Travessura!
Chegamos em nove dias ao arquipélago de Cabo Verde, na ilha de São Vicente, com vento forte nos empurrando. Entramos no abrigado porto da cidade de Mindelo e fomos para a marina. Ficamos apenas três dias em Cabo Verde, o suficiente para descansar, arrumar algumas coisinhas e fazer um passeio pela ilha, que também é muito escarpada. Vista do mar, na nossa chegada, a Carol disse que parece que alguém pegou uma grande faca e cortou em ângulo reto as montanhas, criando paredões imensos com praticamente 90 graus de inclinação! Essa topografia cria paisagens maravilhosas quando passeamos no meio da ilha também. Cabo Verde, apesar de ser um lugar com muita gente pobre, tem um quê de Bahia, pois o povo é simpático e gosta muito de brasileiros. Na nossa entrada, com os policiais da imigração, passamos meia hora falando quase só de novelas e de atores e atrizes brasileiros!
Compramos mais algumas coisinhas para a travessia (ainda bem que abasteci em Tenerife, pois o abastecimento aqui é difícil mesmo!) e zarpamos para fazer nossa segunda maior travessia: 1.650 milhas até o Brasil, passando pela ITCZ, a zona de convergência intertropical também conhecida como doldruns, de ventos inconstantes e muitas instabilidades. E na outra ponta dessa rota, ansiosos para chegar lá, nos esperava nossa querida Natal, no nosso muito amado Brasil!!!
Os primeiros dias de viagem foram ótimos, com bons ventos e o mar ajudando. Fizemos ótimas singraduras nesses dias, descendo para o sul paralelamente à costa da África. Vimos golfinhos várias vezes e pássaros marinhos sempre.
Chegamos, então, à ITCZ. O vento se tornou muito fraco, inconstante e os nossos conhecidos “pirajás” entravam sempre, trazendo normalmente chuvas pesadas. O motor entrou em funcionamento e fomos nos arrastando por quase dois dias. Um desses pirajás começou enquanto almoçávamos e o vento ficou forte demais! Jogamos nossos pratos para dentro e tivemos que tirar todo o pano, deixando aberto apenas um pedacinho de nada de genoa. Com certeza, o vento atingiu 50 nós, cerca de 90 quilômetros por hora, ou mais!!! A chuva passava na horizontal e o mar estava todo branco com as cristas das ondas. Isso durou meia hora e logo não havia mais vento. Sendo um vento rápido, o mar não cresceu muito (ainda bem!). Isso nos mostrou bem como pode surpreender essa região.
Quando saímos da ITCZ, entramos nos alísios do hemisfério sul e pudemos colocar a proa na direção de Natal. Que delícia! O vento era sempre constante, os pirajás foram sumindo aos poucos e as singraduras eram sempre boas, mesmo usando pouco pano para termos mais conforto. O amigo Pimenta, que nos enviava informações meteorológicas, sempre enviava: “vento de 16 a 18 nós de través!”. E lá fomos nós, rumo ao Brasil em velocidade, pois nossa ansiedade de rever nosso país estava grande!
Golfinhos apareceram vários dias. Num deles, eu estava dentro do barco quando o Jonas e a Carol gritaram para eu sair para ver os golfinhos. Quando subi ao cockpit, vi ao lado do barco duas baleias, enquanto eles fotografavam os golfinhos na proa! São belas surpresas que o mar sempre proporciona!
Iniciamos nossas atividades de pesca e pegamos vários peixes, que foram transformados em sashimi e filés grelhados. Após passar por Fernando de Noronha, onde não paramos pois as taxas fora da Refeno são abusivas, começamos a deixar a linha de pesca na água sempre, só a removendo à noite. Pegamos vários atuns, pois a ideia é fazer uma grande peixada com os amigos de Natal.
No penúltimo dia de viagem, houve um grande evento festivo à bordo do Travessura: meu aniversário, não um qualquer, mas sim o de meio século! E começou cedo! A Carol me chamou para meu turno às 3 da madrugada. Enquanto me arrumava, ela e o Jonas começaram a cantar e tocar “Parabéns pra você”. Comemos um abacaxi em calda para comemorar e fiquei muito contente. Em poucos minutos começaram a entrar mensagens no telefone satelital, dando os parabéns de desejando muitas felicidades. Um céu totalmente estrelado foi meu presente de aniversário, junto com vento gostoso e mar calmo. Posso dizer que, quando tinha 18 anos e sonhava viver no mar e pescar, não podia imaginar, nem nos meus sonhos mais ousados, que faria meus 50 anos com meus filhos, numa travessia de retorno ao Brasil, após viver tantas coisas belas nos últimos anos! Papai do Céu, OBRIGADOOO!!!
No dia seguinte, o décimo terceiro da travessia, chegávamos a Natal, onde os amigos Antonio, Rô e Rodrigo nos esperavam com o café da manhã prontinho no clube. Viram no Spot que chegávamos e vieram para cá cedo nos esperar. As frutas, os pães e o café que trouxeram fizeram sucesso, pois os nossos acabaram no quinto dia da travessia. Essa é a recepção de Natal: como seu clima, sempre calorosa! Logo revíamos os vários amigos do Iate Clube do Natal, matávamos saudades e começávamos a contar as histórias da viagem, aliás, muitas para contar! Sem parar de conversar, também fizemos o almoço: peixe na brasa, incluindo o Nelson e a Lúcia do Avoante e o Joca, que estavam no clube nessa sexta-feira. No final da tarde, apareceu no clube o primo Mário, que veio de Portugal passar férias em Natal e viu que chegáramos. Matamos um pouco da saudade dele e ainda falamos com a prima Oracília pelo telefone, mandando beijos para todos em Portugal.
E, finalmente, nos demos conta de que, apesar da nossa viagem continuar, pois ainda temos dois meses previstos até o nosso retorno em Ilhabela, acabamos de completar a sonhada circunavegação do Atlântico Norte e voltamos “ao quintal de casa”! Que sensação boa! VIVA!!!
Nós partimos ansiosos pelo conhecimento, vivemos intensamente todas as novidades, lugares e pessoas e voltamos saudosos do nosso lugar e das pessoas que queremos bem! Tudo foi maravilhoso e em cada fase do ciclo tivemos grandes emoções. Aliás, poderíamos dizer “enormes”!
Mas, o que foi melhor?! A resposta é: TUDO!!! Pois tudo faz parte do ciclo e uma parte não existe sem a outra. No nosso vocabulário de sonhos e realizações, só não pode existir uma palavra: “parar”!
Essa última travessia do Atlântico foi marcada, também, por muitos “pensamentos”. São embriões de sonhos nascendo. Náuticos ou não, eles germinam por conta própria, vão crescendo, tomando corpo e interagindo entre eles, se completando. E em pouco tempo tomam conta de nós, como se existíssemos apenas para realizá-los.
Vou tomar a liberdade de completar a frase do começo deste artigo: viver é um eterno sonhar, partir, realizar, voltar e sonhar! Ou será que sonhar, partir, viver, voltar e sonhar é o eterno viver?!! A diferença é sutil, amigo leitor, e vou deixar para você decidir.
Provavelmente, o próximo texto para a Revista Ilhabela será escrito na própria Ilha (com letra maiúscula, substantivo próprio!!!). E que saudades temos dela!!! Para acompanhar nosso retorno, vejam nosso blog www.tresnomundo.blogspot.com, pois ainda temos toda a descida da maravilhosa costa brasileira no verão para desfrutar, terreno fértil para que nossos sonhos germinados cresçam e outros possam surgir! Abraços!!!