Com a instalação das novas passarelas nas cachoeiras do Areado e Saquinho, uma das principais trilhas de Ilhabela está consolidada para o ecoturismo.
Eleita pelo jornal inglês ‘The Guardian’ uma das dez praias mais bonitas do Brasil, o Bonete é um verdadeiro refúgio entre o mar e a Mata Atlântica, onde só é possível chegar a pé, em uma caminhada que dura cerca de três a quatro horas ou de barco, se as condições do mar permitirem.
Suas areias claras e águas transparentes, cercadas pelo verde intenso da mata e pela beleza do rio que deságua em uma das pontas da praia completam o visual paradisíaco, que abriga uma das últimas comunidades tradicionais do arquipélago. Não há energia elétrica, a água é captada de cachoeiras, não há carros nem motos e o celular não funciona!
Reunidas, todas estas características transformaram o Bonete no destino perfeito para ecoturistas que querem contemplar a natureza e se desconectar da civilização, atraindo não apenas visitantes brasileiros, mas estrangeiros de várias partes do mundo, que muitas vezes desembarcam no país apenas para conhecer a praia.
A trilha e as passarelas – aberta e bem marcada, a trilha para o Bonete tem quase 12 quilômetros e é cortada por três cachoeiras. Se para os ecoturistas, atravessar a mata é parte obrigatória do roteiro, para os moradores este trajeto é, muitas vezes, a única forma de chegar à comunidade. Quando o tempo fecha e o mar fica ruim não é possível sair nem chegar de barco e o acesso por terra é a única alternativa.
Por isso, as passarelas eram uma antiga reivindicação da comunidade, pois em dias de chuva forte, o aumento do volume da água impedia a travessia das cachoeiras, colocando em risco moradores e visitantes, que muitas vezes chegaram a ficar presos entre uma cachoeira e outra, sem poder prosseguir nem voltar.
A construção da primeira passarela, instalada sobre a Cachoeira da Laje, teve início em junho de 2011, mas foi paralisada ao sofrer embargo da Polícia Ambiental e ser acionada judicialmente pelo GAEMA – Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente por possível prática de crime ambiental.
O problema é que para levar os materiais para a construção da passarela até a cachoeira, a prefeitura abriu com tratores o primeiro trecho da trilha, que corresponde a cerca de 1/3 do trajeto. A ação mobilizou rapidamente a comunidade, que se viu preocupada com a antiga ameaça da possibilidade de abertura de uma estrada que permitisse a chegada de carros e motos à praia.
Em junho de 2012, depois de cumprir as exigências impostas pelo processo de embargo, as obras da primeira passarela foram concluídas e o equipamento foi entregue à comunidade. A partir daí, teve início a discussão sobre a melhor alternativa para a construção das outras duas passarelas, que continuavam sendo essenciais, mas não poderiam causar os mesmo impactos gerados pela primeira.
Dispostos a seguir com o projeto sem causar novas intervenções na trilha, representantes da comunidade do Bonete propuseram à prefeitura, por meio da Associação Bonete Sempre, que todo o material fosse carregado pelos próprios moradores, que fariam o transporte a pé, sem o uso de nenhuma máquina ou veículo. Na época a proposta não foi aceita e só depois da intervenção do Ministério Público Estadual e Federal o projeto voltou a andar.
Guerreiros do Bonete – mais de três anos depois, no final de outubro de 2015, as nove toneladas de material para a construção das passarelas chegou a bordo de uma grande embarcação ao Bonete. O primeiro desafio do grupo de guerreiros que se dispôs a cumprir a missão foi o desembarque, realizado com a ajuda de canoas, até a praia.
Na semana seguinte, a segunda etapa: levar quatro toneladas de madeira, brita, cimento e outros materiais morro acima, nas costas, até a Cachoeira do Saquinho. Missão impossível?! Foi o que eu disse ao ouvir o André, o Feijão, o Gabriel e outros caiçaras que participaram ou acompanharam tudo. Mas parece que nada é impossível pra esse time de guerreiros!
Na terceira etapa, o transporte das cinco toneladas de material para a Cachoeira do Areado aconteceu primeiro por mar, saindo de canoa da praia e desembarcando na costeira. A primeira dificuldade foi vencer as ondas, que impediam a canoa de se aproximar da encosta e a solução encontrada por eles foi arremessar as vigas grandes de madeira ao mar, amarradas em bóias, e depois puxá-las com a ajuda de cordas. Para o restante do material, construíram uma balsa improvisada com tambores vazios e madeira, que diante do mar bravo resistiu a apenas três viagens. Determinados a concluir a missão, transportaram o que faltava, incluindo os sacos de cimento, em um caiaque.
Depois de desembarcar na costeira, o material seguiu morro acima, mais uma vez nos braços e costas dos boneteiros, em um trabalho emocionante, que vai ficar marcado pra sempre na história da comunidade, provando a máxima de que a união faz a força e mostrando que é possível encontrar alternativas capazes de atender as necessidades do povo caiçara sem descaracterizar ou impactar seu território.
Depois de receber o material, a equipe da CS Construção, empreiteira contratada pela prefeitura, executou a obra das duas passarelas. Construídas sem impacto e perfeitamente integradas à natureza, elas ficaram prontas em Janeiro de 2016, já estão sendo utilizadas por turistas e moradores e em breve devem ser inauguradas oficialmente.
Associação Bonete Sempre
A conquista das passarelas é um dos exemplos da força e determinação da Comunidade do Bonete, mas não é a única. Em 2013, a Prefeitura de Ilhabela elaborou sua proposta de Zoneamento Econômico Ecológico que integra o Plano de Gerenciamento Costeiro do Litoral Norte, que entre outras medidas, transformaria praias como Bonete e Castelhanos em áreas urbanas. Às vésperas da votação dos mapas no Grupo Setorial do GERCO a informação chegou às duas comunidades tradicionais, que imediatamente se mobilizaram e reuniram um grupo que compareceu à votação.
Lá, pediram a palavra e se manifestaram contra a aprovação das alterações propostas, mas foram ignorados e a votação seguiu. Percebendo a fragilidade daquelas regiões e a importância do tema, representantes do Governo Estadual e da Promotoria Pública se propuseram a ajudar e foram até a Comunidade do Bonete para explicar, de forma imparcial, como funcionava o processo de Zoneamento Econômico Ecológico, o que cada zona permitia e proibia e quais os seus impactos.
No dia seguinte, mais informados e conscientes, os moradores receberam a visita do prefeito e fizeram sua primeira grande manifestação contra a proposta de urbanização, em um encontro que reuniu grande parte da comunidade e foi marcado pela indignação, força e determinação em defender seu território.
Na audiência pública realizada em agosto de 2013 para debater o assunto com a população de Ilhabela, cerca de 500 pessoas lotaram o Ginásio Municipal e se manifestaram de forma unânime contra a proposta de zoneamento, que também continha alterações potencialmente impactantes na parte urbana do arquipélago. Na ocasião, caiçaras nativos do Bonete e de Castelhanos voltaram a falar sobre a importância de preservar o local e o modo como vivem e reafirmaram sua posição contra as alterações previstas no zoneamento da região.
Mais uma vez amparados pelo Ministério Público, que destacou na audiência o direito das comunidades tracionais de participar das decisões sobre a região onde vivem, os boneteiros voltaram a se organizar. Passaram a ocupar vagas em conselhos municipais e grupos de interesse, como os Conselhos do Plano Diretor, do Meio Meio Ambiente, de Turismo e o Grupo Setorial do GERCO, promoveram manifestações importantes que tiveram destaque na mídia nacional, como o protesto marítimo realizado durante a abertura da 40ª Semana Internacional de Vela de Ilhabela e fundaram oficialmente, em março de 2013, a Associação Bonete Sempre, formada e dirigida por moradores do Bonete.
Em uma nova conquista histórica, as reivindicações da sociedade civil foram atendidas e a ameaça de urbanização foi descartada, mantendo as praias do Bonete e de Castelhanos como zonas rurais e resultando na formulação de um novo mapa, construído de forma mais participativa.
A atuação da Associação também trouxe benefícios como a parceria com a Marinha do Brasil para a realização de cursos e emissão de certificados de Arrais Amador para os moradores, instalação de sinalização turística em parceria com a Secretaria de Turismo e com o Instituto Arqueológico de Ilhabela, reforma da quadra esportiva, instalação de um gerador a diesel doado pelo Instituto Bonete e intermediação junto aos órgãos públicos de diversas solicitações da comunidade.
Atualmente, o foco dos representantes da entidade, presidida por André Queiroz, está voltado para a questão da energia elétrica. Depois de diversas discussões envolvendo o Ministério Público e a concessionária Elektro, o Bonete foi incluído no Programa Nacional de Universalização de Acesso à Energia Elétrica. Serão instaladas placas individuais de energia solar em todas as residências, num sistema eficiente com dez placas por casa, que vão gerar 80 kWh por mês, medida que deve atender as necessidades básicas de consumo em toda a comunidade.
Outras duas reivindicações que aguardam retorno são a contratação de mais uma enfermeira, para que o posto de saúde possa permanecer aberto inclusive aos finais de semana, o aumento da frequência do atendimento médico, que atualmente ocorre em média a cada 40 dias e a manutenção da contratação dos guarda-vidas durante o ano inteiro e não apenas na temporada.
Também estão em andamento as discussões para a solução da questão do saneamento básico, com o apoio do Secretário de Meio Ambiente de Ilhabela e em breve a visita de um técnico deve orientar a escolha da melhor alternativa. De acordo com André Queiroz, a medida é fundamental para garantir que o Rio Nema, que é porto de entrada, parque de diversão das crianças e cartão postal do Bonete, permaneça limpo e preservado.
“A intenção é buscar sempre o que é melhor para a comunidade e reunir pessoas que querem ver o Bonete protegido e preservado”, explica Feijão, jovem caiçara que por sua atuação em defesa do Bonete é considerado um dos líderes locais.