por Cintia Bendazzoli*
Há 2 mil anos Ilhabela era domínio dos sambaquieiros, os primeiros indígenas soberanos do litoral brasileiro. Desenvolvidos, adaptados e exímios navegadores, os grupos sambaquieiros logo se dispersaram por todo o arquipélago. Mil anos se passaram, entretanto, e as áreas estuarinas, fartas em recursos, tornaram-se importante atrativo para outras populações indígenas que disputavam territórios nas encostas da serra. Eram os grupos indígenas do tronco linguístico Macro-Jê que, vindos do planalto, deslocavam-se pelos rios e caminhos que cruzavam a Serra do Mar rumo ao litoral.
Os índios do tronco Macro-Jê eram horticultores e ceramistas. Dominavam as técnicas de cultivo e de produção da cerâmica, o que lhes permitia cozinhar e estocar alimentos por longos períodos. Para isso, trabalhavam o barro e produziam potes, tigelas e vasilhas utilizadas em atividades cotidianas. Também conheciam as técnicas de produção de artefatos líticos (feitos em pedra), elaborando ferramentas obtidas a partir do polimento ou lascamento das rochas. A caça era parte das atividades cotidianas e incluía animais de grande porte. A horticultura também era praticada, resultando no consumo de significativa diversidade de alimentos como a mandioca doce e amarga, o milho e a batata doce. Alguns dos produtos eram processados, o que garantia a conservação por mais tempo (como a farinha de milho e a de mandioca).
Esses grupos Jês, por outro lado, não dominavam o território litorâneo, área até então, exclusivamente sambaquieira. Entretanto, pressionados entre disputas territoriais travadas com outras populações ceramistas, os indígenas Jês passaram a se aventurar pelas praias e costeiras, resultando num contato mais estreito com os sambaquieiros do litoral. Dessa forma, os Jês aprenderam gradativamente a conhecer e explorar os recursos da região, passaram a identificar as melhores áreas para captação de matéria prima e produção de artefatos e iniciaram sua aventura pelas águas marinhas, até então, inexploradas por eles.
Ainda não é sabido se o contato entre os grupos Jês e sambaquieiros se deu de maneira violenta, por meio de guerras ou disputas, ou se ocorreu de modo mais tranquilo. Sabe-se, porém, que certamente houve interação e envolvimento entre as culturas. É o que nos revelam os últimos sambaquis construídos no arquipélago de Ilhabela, os quais refletem características de ambas as culturas em seus momentos finais de construção e nos seus derradeiros rituais fúnebres. Sabe-se também que, seja por meio de guerra e disputa, seja de forma mais pacífica, a chegada dos povos Jês resultou na paulatina decadência da cultura sambaquieira, sobrepujada pela presença Jê.
Há aproximadamente 600 anos A.P (Antes do Presente) os Jês já figuravam como os grupos soberanos no arquipélago de Ilhabela, deslocando-se pelas praias e estabelecendo seus assentamentos e suas aldeias na Ilha de São Sebastião. Na face norte da ilha os Jês encontraram um excelente abrigo na região de Furnas, e ali se estabeleceram há quase 460 anos A.P (Antes do Presente), deixando seus vestígios sobre um sambaqui construído neste mesmo local 1500 anos antes. Já no bairro do Viana constituíram importante aldeia revelada na década de 1970 durante as obras de construção de uma residência. Nesse importante sítio arqueológico foram encontrados diversos fragmentos de potes e tigelas de barro, ferramentas e adornos labiais feitos de pedras, além de urnas funerárias contendo esqueletos preservados em seu interior.
Os grupos Jês assentaram aldeias de norte a sul da ilha e, gradativamente ampliaram seus territórios até as regiões insulares mais distantes. Essa soberania, porém estava com os dias contados. Foi dali, de seus domínios territoriais, que os primeiros Jês viram despontar no horizonte os novos conquistadores desta terra, navegando em suas embarcações à vela vindas de além-mar, a procura de riquezas e terras para colonizar.
*Cintia Bendazzoli, Paleógrafa e Historiadora com Bacharelado e Licenciatura pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP) e Mestrado e Doutorado em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP). Especialista no estudo de sítios arqueológicos do litoral, com ênfase nas populações indígenas costeiras do litoral sul e sudeste. Entre 2007 e 2013 dedicou-se à realização de levantamentos históricos e pesquisas arqueológicas no arquipélago de Ilhabela. De 2014 a 2017 atuou como arqueóloga junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/SP e foi Diretora de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal da Cultural de Ilhabela entre 2017 e 2019. Atualmente é representante regional do Litoral Norte Paulista junto ao Sistema Estadual de Museus – SISEM.
