*por Cintia Bendazzoli

 

Foram as extensas praias de areia fina, as ensedas abrigadas, os rios de água doce em seu encontro com o mar que chamaram a atenção dos primeiros povos estabelecidos no continente. As regiões estuarinas ofereciam fartos recursos para a sobrevivência desses nativos, que também poderiam encontrar na Ilha de São Sebastião madeira para suas canoas e diferentes tipos de pedras para elaborar suas ferramentas. Há 2 mil anos, espalhados pelo continente, os primeiros desbravadores do litoral paulista procuravam novas áreas para estender seus domínios. E à sua frente despontava a frondosa Ilha de São Sebastião, até então, desabitada. Foram os povos sambaquieiros, os soberanos da costa, os primeiros habitantes do arquipélago de Ilhabela.

 

Sambaquieiros eram grupos indígenas que baseavam sua subsistência na pesca, na caça de animais de pequeno porte e coleta de moluscos, crustáceos e vegetais. Ocupando preferencialmente as áreas estuarinas, das quais obtinham boa parte dos recursos que precisavam, os sambaquieiros dedicavam boa parte do seu tempo à construção de seus monumentos funerários. Os sambaquis, como são denominados esses monumentos, eram erigidos a partir do acúmulo de carapaças dos moluscos, ossos de peixes e restos de crustáceos. Construídos de maneira intencional e de forma reiterada ao longo de centenas de anos, os sambaquis serviam como destino dos mortos. Suas camadas de conchas abrigam áreas funerárias que contém, além dos vestígios humanos, os adornos corporais, ferramentas feitas de ossos ou pedras e demais acompanhamentos fúnebres deixados junto aos enterramentos.  São também frequentes nos sambaquis as fogueiras ritualísticas relacionadas aos sepultamentos, das quais é possível se obter datações radiocarbônicas.

 

Ainda que as áreas estuarinas fossem as preferidas pelos povos sambaquieiros, sua dispersão para a Ilha de São Sebastião, com relevo acidentado e grande quantidade de matacões rochosos, demandou adaptação ao novo território. Depois de ocupadas as áreas preferidas, com presença de mangues e estuários, os sambaquieiros passaram a construir seus monumentos funerários associados aos abrigos e paredões. Dessa forma, teve início na Ilha de São Sebastião uma nova forma de organização do espaço, com a utilização de tocas para alojar os sambaquis. Essa forma de estabelecimento foi, posteriormente, expandida para os demais territórios sequencialmente ocupados pelos sambaquieiros: as ilhas da Vitória e dos Búzios.

 

Todavia, há 2 mil anos, a dispersão sambaquieira para a Ilha de São Sebastião já estava iniciada, ação que mudaria para sempre a conformação deste território. Nessa época antiga, os soberanos da costa já vislumbravam nos abrigos rochosos áreas potenciais para a construção de seus monumentos. E foi, num deles, no norte da ilha, que teve início um ritual de sepultamento que ficaria marcado para sempre na história deste arquipélago.  Ali, entre conchas, ossos de peixes e blocos rochosos era sepultado um sambaquieiro que só seria descoberto quase dois mil anos depois.

 

As escavações realizadas nesse sambaqui permitiram reescrever parte da história deste indivíduo e contribuíram significativamente para o entendimento do passado desta ilha. A datação realizada através da análise de Carbono 14 extraídos dos ossos deste sambaquieiro revelou que o homem havia morrido há quase 2 mil anos, mais precisamente há 1920±40A.P (anos Antes do Presente), sendo até agora o mais antigo habitante já conhecido deste arquipélago. Sepultado em posição fetal e com um bloco rochoso apoiado sobre a cabeça, este ritual escreveu os últimos capítulos da história de um homem de aproximadamente 45 anos e que sofria de uma infecção sistêmica. Sepultado pelos seus entes mais próximos, o local de seu jazigo foi, pouco tempo depois abandonado e o sambaqui no qual foi enterrado ficou esquecido. Somente 1500 anos depois outra população se interessaria por este local, deixando vestígios de sua presença no interior daquele mesmo abrigo. Mas essa já é uma outra história…

 

*Cintia Bendazzoli, Paleógrafa e Historiadora com Bacharelado e Licenciatura pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP) e Mestrado e Doutorado em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP). Especialista no estudo de sítios arqueológicos do litoral, com ênfase nas populações indígenas costeiras do litoral sul e sudeste. Entre 2007 e 2013 dedicou-se à realização de levantamentos históricos e pesquisas arqueológicas no arquipélago de Ilhabela. De 2014 a 2017 atuou como arqueóloga junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/SP e foi Diretora de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal da Cultural de Ilhabela entre 2017 e 2019. Atualmente é representante regional do Litoral Norte Paulista junto ao Sistema Estadual de Museus – SISEM.