Por: Cintia Bendazzoli
O dia já havia raiado no litoral norte paulista e os grupos indígenas que ali viviam estavam empenhados em suas atividades cotidianas distribuídas entre homens, mulheres e crianças. Mas, ao contrário do que poderiam supor, esse não seria um dia como outro qualquer. Era 20 de janeiro de 1502 e o navegador italiano Américo Vespúcio viajava com sua frota pela costa brasileira fazendo reconhecimento do território, identificando acidentes geográficos e paisagens dignas de nota. Vespúcio compunha comitiva que explorava o continente recém-descoberto e, nesse dia, viu despontar próxima à costa uma das mais frondosas e exuberantes ilhas da região, batizando-a com o nome de Ilha de São Sebastião em alusão ao santo do dia do calendário cristão.
Entre a monumental Ilha de São Sebastião e o continente alonga-se um amplo braço de mar, um canal que os indígenas aliados dos portugueses denominavam Toque-Toque. Toda aquela região era domínio da mata, da montanha e dos povos nativos, e os séculos que se seguiram evidenciaram o crescente interesse dos colonizadores pelas riquezas naturais e seu amplo território. A Ilha de São Sebastião, mesmo majestosa, não recebeu atenção imediata por parte dos recém-chegados. Relatos deixados pelo Padre José de Anchieta ainda no século XVI retratavam a ilha como um local de parada para descanso e abastecimento. Enquanto isso, do outro lado do canal, os conquistadores portugueses se faziam cada vez mais presentes.
Os colonizadores dominaram essas paragens estabelecendo fazendas e engenhos nos terrenos situados entre a beira-mar e as encostas da serra. Com o tempo cresceram em número e em importância, formando uma incipiente povoação na porção continental situada em face à Ilha de São Sebastião. A falta de uma denominação própria a fez nomeada de “São Sebastião da Terra Firme” incorporando o nome dado por Vespúcio à ilha defronte. O núcleo de povoação que se desenvolveu no continente foi elevado à categoria de Vila em 1636 e contemplava os terrenos da terra firme e também a porção insular. A nova vila aparece nominada nos documentos antigos como “Vila da Ilha de São Sebastião”, ou também “Vila de São Sebastião da Terra Firme” mantendo incorporada em seu nome a referência à ilha fronteira.
Entre 1636 e 1805 o território insular que atualmente compõe o município de Ilhabela esteve incorporado ao território de São Sebastião. A emancipação político/administrativa ocorrida em 1805 modificou completamente essa condição, dando origem à formação de uma nova vila com sede na Ilha de São Sebastião. Denominada Vila Bela da Princesa em homenagem a D. Maria Tereza, a Princesa da Beira, a nova vila passou a contemplar sob sua jurisdição o território insular que atualmente compõe o município de Ilhabela. Estavam, portanto, alicerçadas as bases jurídico/administrativas necessárias para o desenvolvimento independente das duas vilas coloniais: a Vila de São Sebastião da Terra Firme e Vila Bela da Princesa.
Mas ao contrário do que poderiam supor, ou mesmo desejar, os senhores de engenho que se empenhavam fervorosamente no desmembramento administrativo e independência política de suas vilas, a relação entre a ilha e continente permaneceu intensa e profunda como fora desde os tempos mais antigos. Ao longo de suas histórias, as duas vilas partilharam mais do que o nome do santo em seus domínios territoriais… Compartilharam espaços marinhos, recursos naturais, viveram crises, dividiram ganhos e lado a lado construíram suas histórias individuais. E como haveria de ser diferente em um lugar onde o sol nasce às costas dessa grande ilha e se põe atrás das escarpas da serra no continente, onde se partilham tempestades, ventos, chuvas, verões, cardumes, história e cultura. Uma cidade olha para a outra. Um mergulho em suas histórias é um profundo desnudar das relações intensas estabelecidas entre os que vivem de um lado do canal e os que moram do outro.
*Cintia Bendazzoli, Paleógrafa e Historiadora com Bacharelado e Licenciatura pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP) e Mestrado e Doutorado em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP). Especialista no estudo de sítios arqueológicos do litoral, com ênfase nas populações indígenas costeiras do litoral sul e sudeste. Entre 2007 e 2013 dedicou-se à realização de levantamentos históricos e pesquisas arqueológicas no arquipélago de Ilhabela. De 2014 a 2017 atuou como arqueóloga junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/SP e foi Diretora de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal da Cultural de Ilhabela entre 2017 e 2019. Atualmente é representante regional do Litoral Norte Paulista junto ao Sistema Estadual de Museus – SISEM.